Da impenhorabilidade da pequena propriedade rural: Repercussões e divergências jurídicas conforme a jurisprudência do STJ

Em termos históricos, a proteção da propriedade sempre foi um dos pilares para a própria manutenção do meio familiar, considerando a família como um núcleo para a convivência em sociedade, a qual proveria ao indivíduo suas garantias básicas de desenvolvimento social, motivo pelo qual, sempre foi protegida pelo Estado.

O conceito de propriedade evoluiu conjuntamente à humanidade, visto que já foi considerado como direito absoluto e indisponível – como era feito no direito grego e romano – chegando até mesmo estar totalmente nas mãos do Estado durante a Idade Média, período em que houve forte influência da Igreja Católica por meio do controle papal e do sistema de feudalismo, onde eram cedidas as terras aos vassalos para produção servil.

O direito individual à propriedade se modificou após a Revolução Francesa (1789-1799), que, através de influência do iluminismo, garantiu maior liberdade política e econômica aos indivíduos, e posteriormente com a Revolução Industrial (Século XVIII) que promoveu o desenvolvimento urbano e as buscas por salvaguardar direitos mínimos de existência, como a educação, saúde, e a moradia.

Hodiernamente, a vigente Constituição da República também tutelou amparou o proprietário, reconhecendo como um direito fundamental com a cláusula de garantia do direito de propriedade (CF, art. 5º, XXII) – proclamando que “ninguém será privado (…) de seus bens, sem o devido processo legal” (art. 5º, LIV).

Trazendo o introito ao meio agrícola, o inciso XXVI, do artigo 5º, da Constituição Federal, prevê que “a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamentos de débitos decorrentes de sua atividade produtiva”. No mesmo sentido o art. 833, VIII, do CPC/2015, com idêntica redação ao art. 649, VIII, do CPC/1973, estabelece que são impenhoráveis “a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família”.

A pequena propriedade rural foi definida pela Lei nº 8.629/93, em seu art. 4º, que a conceituou como o imóvel rural de área de até quadro módulos fiscais, sendo esta uma unidade de medida fixada pelo INCRA para cada município, ou seja, a delimitação da área mínima necessária ao aproveitamento econômico do imóvel rural, capaz de gerar a subsistência e o progresso social e econômico do agricultor e sua família.

Cumpre acrescentar, ainda, que o Supremo Tribunal Federal, em análise da referida impenhorabilidade, afastou a exigência de que a dívida seja oriunda da atividade produtiva para o reconhecimento da proteção, entendendo ser necessário o preenchimento de somente dois requisitos: “Constituição – do seu art. 5º, XXVI, que tornara impenhorável ‘a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família’ (STF – REsp 136753-9 – j. 13/2/1997 – Rel. Min Sepúlveda Pertence).

 Em que pese as disposições constitucionais e legais, o Superior Tribunal de Justiça, por intermédio de suas Turmas, diverge quanto a quem incumbe o ônus de provar que o bem cumpre os dois requisitos para o reconhecimento da impenhorabilidade rural: i) possuir até quatro módulos fiscais e ii) ser trabalhado pela família.

Deste modo, houve a fixação de duas teses sobre o referido ônus. A primeira delas (que me parece mais acertada) exarada pela Quarta Turma do STJ, explicita que, embora seja ônus do devedor provar que seu imóvel se enquadra como pequena propriedade rural, é ônus do credor provar que há exploração do referido imóvel pelo ente familiar, com fulcro a lhe garantir a subsistência.

Tal entendimento se firmou através de um pensamento de se garantir um patrimônio mínimo necessário à obtenção, à manutenção e à sobrevivência da família, advinda justamente da vulnerabilidade e da hipossuficiência do pequeno produtor rural, que sabidamente são famílias menos favorecidas, e vivem basicamente do que produzem em suas propriedades rurais.

[1] STJ – REsp: 1408152 PR 2013/0222740-5, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 01/12/2016, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/02/2017

Assim, houve uma presunção (presunção iuris tantum) de que, enquadrando o imóvel nas dimensões diminutas, este será explorado pelo ente familiar e se destinará ao proveito direto do agricultor e de sua família. Ressalta-se aqui que tal matéria já foi objeto de debate inclusive pelo STF no julgamento do MS nº 21919 de relatoria do Min. Celso de Mello.

Por outro lado, surgiu outra vertente a respeito da matéria através do julgamento do Recurso Especial nº 1913236/MT de relatoria da Min. Nancy Andrighi. Para a relatora, “isentar o devedor de comprovar a efetiva satisfação desse requisito legal e transferir a prova negativa ao credor importaria em desconsiderar o propósito que orientou a criação dessa norma, o qual consiste em assegurar os meios para a manutenção da subsistência do executado e de sua família”.

Desta forma, divergindo do entendimento anterior, a Terceira Turma, atribuiu ao devedor todo o ônus para o reconhecimento da impenhorabilidade, desde ao enquadramento do imóvel nas dimensões legais, até mesmo a exploração da terra pelo proprietário e sua família.

Referido posicionamento, revela-se de certo modo, retrógrado e dissonante a proteção do agricultor, posto que muitas vezes, por serem pessoas simples e sem conhecimento de seus direitos ou disposições legais, acabam que indicando o imóvel que moram e produzem em garantia de um débito para o próprio fomento da atividade campesina que realiza, sendo lesado veementemente frente as instituições financeiras.

Posto isso, revela-se necessário uma análise caso a caso para que haja a interpretação dos dispositivos legais, ao passo que, embora seja uma atribuição do próprio Superior Tribunal de Justiça a uniformização jurisprudencial, os precedentes quanto ao tema ainda divergem, produzindo certa insegurança jurídica as partes litigantes.

[1] […] “A prova negativa do domínio a que se refere a cláusula final do inciso I do art. 185 da Constituição não incumbe ao proprietário que sofre a ação expropriatória da União Federal. O onus probandi, em tal situação, compete ao poder expropriante, que dispõe, para esse efeito, de amplo acervo informativo ministrado pelos dados constantes do Sistema Nacional de Cadastro Rural mantido pelo INCRA.” (MS 21919, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 22/09/1994, DJ 06-06-1997 PP-24872 EMENT VOL-01872-02 PP-00321)

Conclui-se, portanto, que além da Corte Superior, entendimentos firmados pelos Tribunais, reafirmam a necessidade da proteção jurídica ao pequeno proprietário rural, visto que, com intuito de fomentar a economia e cumprir com a função social da propriedade, trabalham arduamente debaixo de sol e chuva para levar a comida do campo à mesa, sendo a impenhorabilidade de sua propriedade, um direito fundamental nos termos da lei.

Ricardo Augusto Sarmiento
04/11/2021

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *