O direito tem como finalidade primordial o acompanhamento dos anseios e evoluções da sociedade, razão pela qual não possui caráter estático, sofrendo, no decorrer dos períodos, modificações em seus institutos, a fim de acompanhar as novas demandas ocasionadas.
Uma das características da sociedade contemporânea é o surgimento de relações jurídicas complexas, originadas em razão de uma coletividade marcada pela pluralidade de sujeitos e da constante inovação tecnológica, contudo sofremos com a lenta inovação legislativa.
Esta perspectiva pode ser exemplificada especialmente porque na contemporaneidade são realizados diversos tipos de contratos envolvendo situações jurídicas existenciais, das quais surgem interesses juridicamente relevantes necessitam de proteção legal, ainda que não exista previsão normativa que abranja sua ocorrência.
Os negócios jurídicos existenciais, podem ser conceituados como aqueles em que não há conteúdo econômico próprio de seu objetivo, como por exemplo, as diretivas antecipadas da vontade – que em muitas vezes pode até existir, mas o caráter econômico não é o mais relevante no contrato, e sim o caráter existencial – os paradigmas clássico e moderno não são suficientes para acolhê-los (LIMA; SANTOS; MARQUESI. 2018, p. 15).
Nestas circunstâncias, percebe-se a necessidade de um novo paradigma contratual para analisar os negócios jurídicos existenciais, no qual seja possível verificar a devida tutela dos interesses juridicamente relevantes que permeiam essas situações jurídicas.
Outrossim, tem-se que há necessidade de serem as relações jurídicas interpresadas de forma singular e de acordo com as peculiaridades de cada uma, o que, por certo, esbarra em uma legislação engessada ao passo que não acompanha a evolução das relações deixando de oferecer o mínimo de aparato legal.
Há, portanto, uma omissão legislativa para a resolução das novas formas de negócios, em especial aos contratos existenciais que versam sobre o mínimo existencial das pessoas, a fim de lhes conferir o mínimo caráter da essencialidade, no sentido de que acessam bens jurídicos fundamentais, como a liberdade, a honra, a dignidade da pessoa humana, tendo as soluções dos casos concretos sido baseadas nos sistemas de precedentes formados pelas decisões das Cortes Superiores, em nítida aproximação com a aplicação vista no sistema Common Law.
De forma simplória, através do consagrado sistema de organização elaborado por René David (DAVID, 1978. p. 21, 22), dois sistemas ganharam destaque, e, sendo estes a Civil Law e a Common Law. De origem no Direito Romano-Germânico, o Civil Law atribui a norma escrita, ou seja, a lei positivada, sua fonte de regulamentação da sociedade, em contrapartida, o Common Law denota-se de regulamentação através das decisões dos casos concretos. O Brasil é adepto ao sistema do Civil Law, ante a prevalência da norma escrita.
Ocorre que, a lacuna legislativa anteriormente narrada, vem sendo “suprida” pelos julgamentos realizados na medida em que as situações são contextualizadas dentro dos processos judiciais, através da utilização de precedentes já formados por outros julgamentos em especial das Cortes Superiores, criando uma orientação decisional que corriqueiramente acabam por ter força legislativa, mesmo não o sendo.
A lacuna legislativa é denominada por boa parte da doutrina como a “revolta dos fatos contra o código”, especialmente em razão do acelerado desenvolvimento da sociedade e da presença de um código engessado (FACHIN, 1992, p. 49). Neste ponto é que se que percebe a utilização prática dos sistemas de precedentes pelo Judiciário brasileiro na resolução dos casos concretos, aproximando-se do modelo Jurídico esposado pela Common Law.
Cumpre reiterar que os negócios jurídicos existenciais, especialmente o contrato, relacionam-se ao mínimo existencial das pessoas, o que lhes confere o caráter da essencialidade, no sentido de que acessam bens jurídicos fundamentais, como a liberdade, a honra, a moradia, a educação, entre outros.
Como exemplificação prática e emblemática acerca da utilização do sistema de precedentes para a resolução de contratos existenciais que não estão abrangidos pela legislação pátria, temos a situação do casamento entre pessoas do mesmo sexo que, ante a omissão legislativa sobre o assunto, e mediante a instauração judicial de diversos pedidos de regulamentação de união estável entre pessoas do mesmo sexo, a matéria chegou ao STF para apreciação, sendo que em 05 de maio de 2011 foi reconhecido a união estável entre casais homoafetivos através do julgamento da ADI 4277 e da ADPF 132. A partir da decisão proferida, os casais começaram a registrar uniões estáveis junto aos cartórios, não havendo, contudo, alteração do estado civil. Só 2 anos depois, em 14 de maio de 2013, o CNJ regulamentou a habilitação, a celebração de casamento civil e a conversão de união estável em casamento aos casais homossexuais.
Outro exemplo que pode ser narrado, julgamento do Recurso Extraordinário n. 1038507 em 18 de dezembro de 2020, com repercussão geral reconhecida no tema 961, onde os ministros do STF, com um placar de 6x3x2 fixaram entendimento sobre a impenhorabilidade da pequena propriedade rural, independente desta ser o único bem dos agricultores, sendo requisito tão-somente a inferioridade de 4 módulos fiscais e ser trabalhada ou ser fonte de renda da família. No julgamento em questão, restou ainda entendido que a garantia a impenhorabilidade está acima da garantia hipotecária firmada pelos contratos de insumos, ou seja, o direito à propriedade e a subsistência dos agricultores se sobrepõem ao direito do credor em efetivar uma expropriação da tal imóvel, pontificando pela garantia ao mínimo existencial para a subsistência.
Nesta toada, percebe-se que o caráter existencial faz com que haja a mitigação do pacta sunt servanda, preservando direitos fundamentais face a garantia do credor existente no contrato firmado.
Tem-se, então que somente com a postura tomada pelas decisões proferidas pelas Cortes Superiores, em especial pelo STF nos exemplos citados, é que está sendo possibilitado o reconhecimento e a efetivação de contratos e direitos existenciais não positivados pela legislação ultrapassada frente as novas necessidades da sociedade contemporânea, garantido aos indivíduos a efetivação da dignidade da pessoa humana em nítida aplicação da Constituição Federal.
Portanto, é possível concluir que há notória aproximação vivida entre o Brasil (como adepto do Civil Law) com os preceitos decisivos expostos pela Common Law, haja vista que as situações que não são pontificadas em lei e que precisam ganhar uma resolução ou forma de comando são apreciadas pelas Cortes Superiores a fim de que tenham sua delimitação aplicada, elucidando de forma prática a formação de precedentes, norteando os casos semelhantes que possivelmente serão ingressados no Judiciário. Inegável, todavia, que a maior dificuldade dessa utilização de precedentes está na busca pela segurança jurídica no Direito brasileiro, ante a mudança da composição dos membros dos tribunais superiores, especificamente do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, e consequentemente a mudança de posicionamento dos julgadores.
Referências:
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. 4º ed. São Paulo: Martins Fontes, 1978.
FACHIN, Luiz Edson. Limites e possibilidades da nova Teoria Geral do Direito Civil. Revista da Faculdade de Direito UFPR. Curitiba, a. 27, n. 27, 1992
LIMA, Caroline Melchiades Salvadego Guimarães de Souza; SANTOS, Pedro Henrique Amaducci Fernandes dos; MARQUESI, Roberto Wagner. Negócios jurídicos contemporâneos: a efetivação da dignidade da pessoa humana com alicerce nos contratos existenciais. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 7, n. 3, 2018. Disponível em: https://civilistica.com/negocios-juridicos-contemporaneos/
Maria Beatriz Colafatti Da Silva