A ausência de regulamentação jurídica no que tange o direito das famílias paralelas se pauta no modo de constituição familiar patriarcal e religioso existente no Brasil, responsável por assentar a ideia da prevalência de um valor moral monogâmico. Diversos referenciais teóricos acerca do tema apontam como tal representação se trata de uma manifestação de poder construída historicamente sob pretexto ético, a fim de preservar um padrão de moralidade, que encontra resistência nos mais variados estímulos sociais conservadores.
Maria Berenice Dias aduz que as influências sociais levaram o legislador a reconhecer juridicidade apenas à instituição do matrimônio, validando somente a família que atendesse às formalidades patriarcais e monogâmicas impostas à época, apesar de entender pela necessidade de “ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar o elemento que permite enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade” (DIAS, 2013, p. 42).
Assim, no contexto histórico em que se vivenciava os avanços trazidos pela Revolução Industrial e, consequentemente, o distanciamento entre as premissas estatais e cristãs, além do ingresso da mulher no mercado de trabalho e sua gradual emancipação, passou-se a dar espaço também à evolução do conceito de família, que foi se amoldando às novas realidades, atentando-se aos princípios da autonomia da vontade dos indivíduos, da dignidade da pessoa humana, bem como da laicidade estatal.
Mas, ainda assim, há quem defenda a existência de um “princípio fundamental monogâmico” no direito, o qual deve ser preponderante. Entretanto, considerando a inexistência de qualquer menção na Constituição Federal, resta evidente que a falsa premissa da monogamia como princípio surge apenas como mais uma imposição social e conservadora, que objetiva instituir que relações ideais são formadas única e exclusivamente por duas pessoas.
O artigo 226 da Constituição Federal elenca as entidades familiares tuteladas pelo Estado, rol considerado exemplificativo pela doutrina majoritária, em que pese a existência de discussões acerca da aplicação e da validade do referido dispositivo para o arranjo familiar poliafetivo.
Nesse viés, demonstra-se que o ordenamento jurídico brasileiro deixou de acompanhar a mutação do conceito preambular de família em sua integralidade, razão pela qual encontra obstáculos nos dias atuais para garantir direitos das entidades familiares paralelas não contempladas pela legislação, tendo em vista que os códigos brasileiros foram, quase que em sua totalidade, criados a partir de um viés familiar monogâmico.
Em vista disso, tem-se que uma entidade poliafetiva se trata uma relação “formada por mais de duas pessoas que se interelacionam entre si, mutuamente e conscientemente das relações que mantêm, sob o intuito duradouro e com a intenção de se constituir em família.” (AZEVEDO, 2018, p. 5), desse modo, considerando que um dos requisitos para caracterização do poliamor é a aceitação das partes envolvidas, é possível fazer uma distinção clara entre os institutos da poligamia e do adultério, por exemplo.
No âmbito dos efeitos jurídicos, surge a problemática de como se aplica o direito sucessório aos companheiros de uma relação poliafetiva, tendo em conta a ausência de embasamento legislativo e jurisprudencial sobre o tema. Desse modo, com a morte de um dos membros da união poliafetiva, deixando bens a serem partilhados, surgem algumas possibilidades de como proceder, prezando pelo tratamento igualitário entre os integrantes do relacionamento.
A solução que parece mais efetiva e adequada seria estabelecendo união estável entre os integrantes da entidade familiar poliafetiva, o que garantiria o direito real de habitação para os cônjuges sobreviventes. Contudo, tal posicionamento encontra óbice no pedido de providências do Conselho Nacional de Justiça, nº 0001459-08.2016.2.00.00001, que se pauta no entendimento de
1 PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. UNIÃO ESTÁVEL POLIAFETIVA. ENTIDADE FAMILIAR. RECONHECIMENTO. IMPOSSIBILDADE. FAMÍLIA. CATEGORIA SOCIOCULTURAL. IMATURIDADE SOCIAL DA UNIÃO POLIAFETIVA COMO FAMÍLIA. DECLARAÇÃO DE VONTADE. INAPTIDÃO PARA CRIAR ENTE SOCIAL. MONOGAMIA.
que a Constituição Federal reconhece apenas a existência de casais monogâmicos.
Assim, na via de encontrar mecanismos alterativos para proceder com a sucessão e a partilha de bens no contexto de poliamor, sem deixar de considerar o princípio da igualdade entre os companheiros, vê-se a triação de bens como uma solução pertinente, fazendo jus ao disposto no artigo 1.832 do Código Civil, tem-se que o cônjuge da relação, quando concorrer com os filhos de casal,
ELEMENTO ESTRUTURAL DA SOCIEDADE. ESCRITURA PÚBLICA DECLARATÓRIA DE UNIÃO POLIAFETIVA. LAVRATURA. VEDAÇÃO. 1. A Constituição Federal de 1988 assegura à família a especial proteção do Estado, abarcando suas diferentes formas e arranjos e respeitando a diversidade das constituições familiares, sem hierarquizá-las. 2. A família é um fenômeno social e cultural com aspectos antropológico, social e jurídico que refletem a sociedade de seu tempo e lugar. As formas de união afetiva conjugal – tanto as “matrimonializadas” quanto as “não matrimonializadas” – são produto social e cultural, pois são reconhecidas como instituição familiar de acordo com as regras e costumes da sociedade em que estiverem inseridas. 3. A alteração jurídico-social começa no mundo dos fatos e é incorporada pelo direito de forma gradual, uma vez que a mudança cultural surge primeiro e a alteração legislativa vem depois, regulando os direitos advindos das novas conformações sociais sobrevindas dos costumes. 4. A relação “poliamorosa” configura-se pelo relacionamento múltiplo e simultâneo de três ou mais pessoas e é tema praticamente ausente da vida social, pouco debatido na comunidade jurídica e com dificuldades de definição clara em razão do grande número de experiências possíveis para os relacionamentos. 5. Apesar da ausência de sistematização dos conceitos, a “união poliafetiva” descrita nas escrituras públicas como “modelo de união afetiva múltipla, conjunta e simultânea” parece ser uma espécie do gênero “poliamor”. 6. Os grupos familiares reconhecidos no Brasil são aqueles incorporados aos costumes e à vivência do brasileiro e a aceitação social do “poliafeto” importa para o tratamento jurídico da pretensa família “poliafetiva”. 7. A diversidade de experiências e a falta de amadurecimento do debate inabilita o “poliafeto” como instituidor de entidade familiar no atual estágio da sociedade e da compreensão jurisprudencial. Uniões formadas por mais de dois cônjuges sofrem forte repulsa social e os poucos casos existentes no país não refletem a posição da sociedade acerca do tema; consequentemente, a situação não representa alteração social hábil a modificar o mundo jurídico. 8. A sociedade brasileira não incorporou a “união poliafetiva” como forma de constituição de família, o que dificulta a concessão de status tão importante a essa modalidade de relacionamento, que ainda carece de maturação. Situações pontuais e casuísticas que ainda não foram submetidas ao necessário amadurecimento no seio da sociedade não possuem aptidão para ser reconhecidas como entidade familiar. 9. Futuramente, caso haja o amadurecimento da “união poliafetiva” como entidade familiar na sociedade brasileira, a matéria pode ser disciplinada por lei destinada a tratar das suas especificidades, pois a) as regras que regulam relacionamentos monogâmicos não são hábeis a regular a vida amorosa “poliafetiva”, que é mais complexa e sujeita a conflitos em razão da maior quantidade de vínculos; e b) existem consequências jurídicas que envolvem terceiros alheios à convivência, transcendendo o subjetivismo amoroso e a vontade dos envolvidos. 10. A escritura pública declaratória é o instrumento pelo qual o tabelião dá contorno jurídico à manifestação da vontade do declarante, cujo conteúdo deve ser lícito, uma vez que situações contrárias à lei não podem ser objeto desse ato notarial. 11. A sociedade brasileira tem a monogamia como elemento estrutural e os tribunais repelem relacionamentos que apresentam paralelismo afetivo, o que limita a autonomia da vontade das partes e veda a lavratura de escritura pública que tenha por objeto a união “poliafetiva”. 12. O fato de os declarantes afirmarem seu comprometimento uns com os outros perante o tabelião não faz surgir nova modalidade familiar e a posse da escritura pública não gera efeitos de Direito de Família para os envolvidos. 13. Pedido de providências julgado procedente.
recebe quinhão igual aos dos filhos, assim, considerando uma relação entre três indivíduos, a repartição dos bens se daria em três partes, sendo uma para um(a) companheiro(a), outra para o(a) outro(a) companheiro(a) e a terceira e última parte, para os filhos.
Outras possibilidades que podem ser adotadas, apesar de mais onerosas, já que envolvem elaboração de escrituras e pagamento de ITCMD, seria o testamento ou a doação dos bens em vida. Por meio do ato de manifestação de última vontade, o cônjuge poderia dispor de seu patrimônio disponível antes do falecimento, deixando o direito real de habitação das propriedades para todos os integrantes da relação. Já através da doação, é possível doar apenas o direito de habitação de determinado bem ou, querendo, as propriedades que componham o patrimônio familiar.
Isto posto, nota-se como o direito sucessório brasileiro é dotado de insegurança jurídica no que concerne aos direitos de famílias paralelas, posto que suas raízes foram constituídas mediante a ideia de inexistência de outro arranjo familiar senão o monogâmico, o que reflete diretamente na dignidade dessas famílias, posto que, diante da ausência de disposição legal acerca da possibilidade de concessão de direitos aos adeptos do poliamor, a jurisprudência pátria majoritária entende pelo não reconhecimento desses direitos, ferindo diretamente os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DIAS, Maria Berenice. MANUAL DE DIREITO DAS FAMÍLIAS. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
AZEVEDO, Camyla Galeão de; AZEVEDO, Thiago Augusto Galeão de. A CONSTITUCIONALIDADE DO POLIAMOR: POSSÍVEL APLICABILIDADE DO DIREITO SUCESSÓRIO AOS COMPANHEIROS DAS ENTIDADES POLIAFETIVAS. Revista Brasileira de Direito Civil em Perspectiva, 2018.
BASTOS, Victor Pina. O DIREITO REAL DE HABITAÇÃO NA FAMÍLIA POLIAFETIVA NO BRASIL. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, Universidade Federal Fluminense, 2020.