Antes de responder de fato essa pergunta, é necessário compreender o que significa, pela definição atribuída pelo Código de Defesa do Consumidor – CDC, o objeto principal dessa lei tão fundamental: o consumidor.
De acordo com o CDC, o consumidor não possui uma definição meramente contratual, se tratando apenas de um simples adquirente de produto ou serviço, mas também um sujeito individual ou coletivo, com interesses e passíveis de se tornarem vítimas de acidentes de consumo ou mesmo de práticas comerciais abusivas por parte dos fornecedores.
Nesse sentido, o dever do Estado é proteger esses consumidores, desde a aquisição ou contratação do serviço ou produto, até a sua utilização pelo adquirente, abrangendo, ainda, a relação do pós-venda, já que o fornecedor tem o dever de assegurar que o que foi fornecido seja eficiente, ou então que corrija eventuais problemas que venham a surgir, mas que não deveriam ocorrer.
E a justificativa utilizada pelo legislador ao definir que esse grupo merecia proteção diferenciada do aparato Estatal é a chamada vulnerabilidade que o consumidor manifesta frente à relação de consumo. Pela definição técnica do termo, o CDC classifica o consumidor como sendo hipossuficiente. Isso porque a intenção do legislador é proteger a parte mais fraca da relação, de modo a equilibrar as relações de consumo.
O fornecedor, além de deter os meios de produção, apresentando o monopólio sobre todo o conhecimento técnico e administrativo para a fabricação de produtos e prestação de serviços, também escolhe como o objeto da relação consumerista será produzido ou oferecido, reduzindo a escolha do consumidor para poder optar, basicamente, apenas entre o que foi oferecido no mercado. Daí porque o consumidor ser hipossuficiente, já que depende de decisões previamente estabelecidas pelo fornecedor.
Ressalta-se que, como regra geral, não é qualquer adquirente que é visto como consumidor do ponto de vista jurídico. O CDC adota a teoria finalista de consumidor, segundo a qual a tutela especial é unicamente aplicada àquele que é destinatário final, fático ou econômico, do produto ou serviço adquirido, o que quer dizer, em outras palavras, que o objeto fornecido não pode ser utilizado para revenda ou para adquirir meios de exercer sua atividade, já que isso seria consumo intermediário, difundindo a proteção estabelecida pela lei e beneficiando profissionais-consumidores que já possuem vantagens em relação a consumidores comuns.
Entretanto, do ponto de vista jurídico, a prática consumerista vem mostrando que existe a necessidade de ampliação da proteção legislativa, mitigando a teoria finalista de forma excepcional.
Essa atipicidade ocorre nos casos em que a pessoa física ou jurídica demonstra que a relação existente resultou em demasiada vulnerabilidade para o consumidor intermediário, seja ela jurídica, situação em que o consumidor não possui meios de analisar contratos estabelecidos, em razão de sua complexidade, técnica, por o consumidor não apresentar conhecimento fático sobre as características do produto ou serviço ou sobre a sua utilização, ou econômica, quando é evidenciado o poderio econômico do fornecedor em relação ao consumidor.
Um caso que chama atenção é a relação existente entre produtores agrícolas e instituições financeiras, quando aquele necessita de alguma forma de financiamento para adquirir os insumos que efetivarão a sua atividade econômica.
De forma geral, a caracterização dessa relação deveria ocorrer pela regra da teoria finalista. Contudo, como se observa da mudança de posicionamento cada vez mais adotada pelos tribunais nacionais em suas diversas instâncias, a adoção do Código de Defesa do Consumidor é medida que deve ser utilizada em razão da vulnerabilidade do agricultor perante o banco.
A vulnerabilidade técnica, nesse caso, se torna evidente, por exemplo, quando o objeto da ação processual é a análise de cédula de crédito rural pignoratícia ou hipotecária, em que não é possível ao consumidor intermediário, ou o agricultor, precisar em qual mês a instituição financeira praticou alguma distorção na cédula rural ou cobrança indevida, tampouco verificar, por si só, as transações realizadas entre as partes, já que tais demonstrações e comprovações apenas podem ser feitas pelo banco.
Dessa forma, os Tribunais de Justiça do Paraná e do Mato Grosso, além do Superior Tribunal de Justiça, já entendem ser possível a aplicação do CDC, com a consequente caracterização de consumidor do agricultor, na relação consumerista com o banco, ainda que o produto ou serviço adquirido seja um intermediário para possibilitar a correta execução de sua atividade econômica, desde que comprovada a sua vulnerabilidade técnica.
Com isso, tem-se que, de forma excepcional à máxima da teoria finalista, o Código de Defesa do Consumidor pode, sim, ser aplicado para produtores rurais que adquirem financiamento bancário para compra de insumos agrícolas, já que se trata de parte hipossuficiente.
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